No início do século XV, enquanto o rei D. João I de Portugal inaugurava o período das expedições marítimas pelo Périplo africano, na China, durante quase três décadas, a Dinastia Ming (1368-1644) patrocinou uma enorme frota de juncos, com o objetivo de expandir sua influência por todo o Oceano Indico. A armada, conhecida como Frota do Tesouro, era comandada pelo grande almirante Zheng He, que liderou sete épicas viagens a partir do porto de Nanquim, rumo à Índia e Arábia, chegando até a costa oriental da África.
Acompanhe agora em “Diário de Bordo” a extraordinária história do grande mestre chinês da navegação.

Um chinês muçulmano
Zheng He nasceu em 1371, na região de Yunnan, no sul da China, proveniente de uma familia Hui, um grupo étnico muçulmano chinês. Seu nome de nascimento era Ma He. Na China, o nome de família é referido em primeiro lugar, seguido do nome dado. “Ma” é na China como abreviação de “Maomé”, indicando a herança islâmica de Zheng He. Seu avô e seu bisavô possuíam o título de “Hajj”, atribuido aos que realizam a peregrinaçāo a Meca.
Aos dez anos de idade, sua cidade foi invadida pelo exército da Dinastia Ming. Ele foi Capturado e, após ser castrado, transportado para a capital, Nanquim, onde serviu na casa imperial como eunuco. Apesar das circunstâncias opressivas e difíceis em que vivia, Ma He fez amizade com um dos principes, Zhu Di, tornando-se seu conselheiro. Quando este se tornou imperador, o amigo subiu para os mais altos cargos no governo. A partir de então, recebeu o título honorífico “Zheng”, passando a ser chamado Zheng He.

A primeira viagem
Em 1403, o imperador Yongle, nome de era adotado por Zhu Di, significando “felicidade perpétua”, ordenou a construção de uma enorme frota de juncos capaz de navegar por todo o Oceano Indico. A supervisão da construção ficara aos encargos de Zheng He, seu homem de confiança.
Em 11 de julho de 1405, após uma série de orações para a deusa protetora dos marinheiros, Tianfei, a esquadra partiu para a índia, já sob o comando de Zheng He. Acredita-se que a expedição era composta por uma tripulação de 27000 homens dividida em cerca de 250 navios, 62 deles conhecidos como “navios de tesouro”, em virtude de sua grande dimensão. Algumas fontes apontam que mediam impressionantes 137 metros de comprimento e 55 de largura, tamanho cinco vezes maior que as célebres caravelas ibéricas. Outras afirmam que atingiam no máximo entre 61 e 76 metros de comprimento.
Após deixarem Nanquim, o primeiro porto estrangeiro em que as embarcações arribaram foi Vijaya, a capital do antigo reino do Champa, próximo da atual Qui Nhon, no Vietnam. De lá, partiram para a ilha de Java, na Indonésia, evitando cuidadosamente um encontro com a frota do pirata Chen Zuyi. Posteriormente, aportaram em Malaca (Malásia), Sumatra e Andamão e Nicobar, na extremidade leste do Golfo de Bengala.
No antigo Ceilão, atual Sri Lanka, o grande almirante bateu em retirada diante das hostilidades do governante local, seguindo então para Calicute, na costa ocidental da Índia, um dos principais portos comerciais do mundo naquela época. Ai permaneceu por algum tempo, trocando mercadorias e presentes com os governantes locais.

Na viagem de regresso à China, carregada de tributos e transportando enviados estrangeiros para a corte imperial, a grande frota deparou-se com os navios do pirata Chen Zuyi, na altura de Palimbão, Indonésia. Chen Zuy manobrou suas embarcações simulando uma fuga, todavia, voltou-se para a esquadra imperial, tentando saqueá-la.
Fortemente armados, os juncos de Zheng He de pronto reagiram, matando 5000 piratas, afundando dez de seus navios e capturando outros sete. O capitão pirata e dois de seus principais companheiros foram aprisionados e levados para a China, sendo decapitados no dia 2 de outubro de 1407.
Concluída a primeira viagem, Zheng He, seus oficiais e marinheiros, receberam as recompensas monetárias do imperador Yongle, o qual ficou muito satisfeito com os resultados da expedição, as homenagens prestadas pelos embaixadores estrangeiros e o aumento do prestigio da China na bacia leste do Oceano Índico

Segunda e terceira viagens
Depois de apresentarem seus tributos e receberem presentes do imperador chinês, os emissários precisavam retornar para suas casas.
Desse modo, em 1407, a grande frota partiu mais uma vez, alcançando o Ceilão, com paradas em Champa, Java e Sião, na atual Tailândia. Dois anos depois, percorreu o caminho de volta, com os porões dos navios repletos de tributos, o que logo motivou mais uma expedição de dois anos (1409-1411), que a exemplo da primeira terminou em Calicute.
Quarta, quinta e sexta viagens
Em 1413, os navios de Zheng He rumaram para sua expedição mais ambiciosa, com destino à Peninsula Arábica e ao Chifre da África, estabelecendo escalas em Ormuz, na entrada do Golfo Pérsico, Aden, no lémen, Mascate, no Golfo de Omā, Mogadiscio, na Somália, e Melinde, no Quênia. No retorno para a China, as embarcações carregavam produtos e criaturas exóticas, incluindo girafas, as quais foram associadas à criatura mitológica Qilin, conhecida na cultura oriental por sua caridade, generosidade e respeito à vida, ou seja, um sinal bastante auspicioso.

Durante a quinta e sexta viagens, realizadas respectivamente entre 1416-1419 e 1421 1422, a Frota do Tesouro seguiu a mesma rota, regressando à Arábia e África Oriental, recolhendo os tributos de trinta estados e principados diferentes, consolidando assim o predomínio chinês.
Entretanto, em 1424, o grande amigo e patrocinador de Zheng He, o imperador Yongle, morreu durante uma campanha militar contra os mongóis. Seu sucessor, o imperador Kangxi, ordenou então o fim das longas e custosas viagens oceânicas. Breve, porém, fora o reinado do novo imperador, que governou por apenas nove meses. Sucedeu-o seu filho, o imperador Xuande, que possuía o espírito aventureiro próprio da juventude. Sob sua liderança, a Frota do Tesouro empreenderia sua última grande viagem.

A sétima viagem
Em 29 de junho de 1429, o imperador Xuande determinou os preparativos para a viagem final da Frota do Tesouro, entregando o comando da armada a Zheng He, que contava então 59 anos de idade e a saúde debilitada.
Três anos durou a última expedição, a qual visitou pelo menos 17 portos diferentes, entre Champa e o Quênia. Desta vez, contudo, o grande almirante não retornou à pátria, morrendo ao que tudo indica em águas indonésias. Antes de sepultá-lo no mar, túmulo digno de sua grandeza, a tripulação recolheu uma trança de seu cabelo e o par de sapatos que usava, levando-os de volta à China e enterrando-os em Nanquim, a capital imperial.
O legado de Zheng He e da Frota do Tesouro
Diante da ameaça mongol na fronteira noroeste chinesa, os funcionários eruditos da Dinastia Ming alertaram os futuros imperadores sobre as elevadas despesas que representavam as extravagantes viagens marítimas pelo Oceano Índico, consideradas um desperdício de recursos face à nova realidade. Desde então, tais expedições deixaram de ser patrocinadas, permanecendo esquecidos seus feitos pelos séculos seguintes.
Todavia, monumentos e artefatos chineses espalhados por toda a orla do indico. encontrados em pontos tão distantes como a costa do Quênia, fornecem sólidas evidências da passagem de Zheng He e da Frota do Tesouro por tais regiões. Além do mais, várias das viagens foram registradas nos escritos de alguns companheiros de bordo do grande almirante, tais como, Ma Huan, Gong Zhen e Fei Xin. Graças a estas fontes, historiadores e público em geral dispõem de elementos seguros que atestam a veracidade dessas surpreendentes aventuras ocorridas há 600 anos.

A Frota do Tesouro na América?
Em 2002, com a publicação do livro “1421 – O ano em que a China descobriu o mundo”, de Gavin Menzies, um oficial Comandante submarinista reformado da Marinha britânica, a história de Zheng He e da Frota do Tesouro ganhou destaque em todo o mundo ocidental.
Na referida obra, o autor defende a controversa tese de que o almirante eunuco e sua armada alcançaram a Nova Inglaterra, no extremo nordeste da costa leste americana, setenta e um anos antes da primeira viagem de Cristóvão Colombo à América.
Não obstante a repercussão mundial da tese, fomentada especialmente pelo sensacionalismo midiático, a comunidade acadêmica refutou-a de maneira quase unànime, inclusive no Reino Unido, tratando-a como mais um dentre tantos contos referentes a expedições marítimas fantásticas.
De qualquer forma, os mesmos pesquisadores não diminuem a relevância histórica das viagens de Zheng He, que empreendendo num espaço de vinte e oito anos sete viagens à frente da Frota do Tesouro, indo da China ao Quênia, imortalizou seu nome na galeria dos maiores navegadores de todos os tempos.
