Em 3 de agosto de 1492, uma modesta frota de três embarcações deixava o porto de Palos de la Frontera, uma pequena cidade da região da Andaluzia, a parte meridional da atual Espanha, nação que consolidava naquele ano sua unificação, com a expulsão dos mouros do reino de Granada.
Patrocinada pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, a expedição era comandada pelo navegador genovês Cristóvão Colombo, que partia com o firme propósito de atingir as Indias pelo oeste, ou seja, cruzando o desconhecido Oceano Atlântico, chamado pelos antigos romanos de Mare Tenebrosum, o Mar das Trevas.
Após dois meses de travessia, em 12 de outubro, Colombo desembarcou na ilha de Guanahani, por ele rebatizada como São Salvador, situada no arquipélago das Antilhas, nas Bahamas. Recebido pacificamente pelos nativos, chamou-os de “indios”, certo de que realmente alcançara as Indias.
Somente dez anos depois, através das viagens e estudos do geógrafo florentino Américo Vespucio, os europeus perceberam que as Indias de Colombo tratavam-se, em verdade, de um Novo Mundo: a América.
Apesar de não ter encontrado o tão sonhado caminho marítimo para as Indias (e morrer acreditando tê-lo feito), Cristóvão Colombo imortalizou seu nome na galeria dos grandes exploradores, em razão da viagem de Descobrimento da América. Do mesmo modo, “Santa Maria’, ‘Pinta’ e ‘Niña’, as três naus da célebre expedição, tornaram-se a partir de então os navios mais famosos da História.
Inaugurando o tópico “Navios Célebres”, Diário de Bordo convida a uma viagem a bordo das naus de Colombo.
A Santa Maria
Nau capitânia de Cristóvão Colombo (ilustração abaixo), a Santa Maria “é seguramente o navio mais famoso do mundo, com exceção da Arca de Noé”, assim afirmou Björn Landström (1917-2002), em seu aclamado livro “O Navio”.
Na mesma fonte, o pesquisador finlandês lembra que “nos principais museus marítimos existem modelos bem construídos e aparelhados, como também monstruosidades que se vendem como recordação, todos tendo em comum a inexatidão”.
Nenhum documento histórico fidedigno atesta com segurança o aspecto e as proporções da ‘Santa Maria’, resultando daí a inexistência de modelos perfeitos da embarcação. Por outro lado, quase todos os especialistas concordam em defini-la como uma carraca, tipo de embarcação desenvolvida pelos portugueses para o transporte de mercadorias, muito empregada em viagens oceânicas entre os séculos XV e XVI, em substituição aos navios mais frágeis que se limitavam ao comércio pelo Mediterrâneo.
O berço da ‘Santa Maria’ é até hoje motivo de controvérsias. Apelidada A Galega’, alguns historiadores defendem
a partir daí a sua construção na Galícia. Outros dizem ter sido construída nos estaleiros reais de Falgote, na cidade de Colindres, na Cantábria. Já outros defendem sua concepção pelas mãos dos carpinteiros do Porto de Santa Maria, cidade da atual província de Cádiz, na Andaluzia.
Biógrafo e contemporâneo de Colombo, o missionário dominicano
espanhol Frei Bartolomeu de Las Casas, notório defensor dos povos indígenas das Américas, cujo relato sobre a expedição de 1492 é o mais aceito pelos historiadores, testemunhara que a ‘Santa Maria’ era um pouco maior que
as outras duas embarcações. Para diferenciá-la da ‘Pinta’ e da ‘Niña’, tradicionais caravelas, Colombo costumava se referir à capitânia simplesmente como “nau”.
A maioria dos estudiosos calcula que a Santa Maria’ possuía aproximadamente 23 metros de comprimento, 7 de boca (largura) e um calado de no máximo 2,80 metros. Seu deslocamento girava em torno de 80 a 100 toneladas, quer dizer, tinha capacidade para carregar 80 a 100 tonéis (barris) de vinho. Ostentava três mastros e gurupés, o mastro que se projeta quase horizontalmente pela proa dos navios a vela.
Em uma anotação de seu Diário, de 24 de outubro de 1492, Colombo registrou o velame que a nau içava: “e levava todas as velas minha nau, a maior, a traquete, a cevadeira, a mezena, e a vela de gávea”.
Destinada apenas para uma viagem de descobrimento, assim como as duas caravelas que a acompanhavam, não apresentava canhões nem transportava homens de
armas.
Embora estivesse ao serviço dos reis de Espanha, a ‘Santa Maria’ era propriedade de Juan de la Cosa, conhecido navegador e cartógrafo que participou das sete primeiras viagens à América e autor do mapa mais antigo atualmente conservado em que aparece o continente americano. Ao lado de Colombo, o capitão geral da expedição, e Pedro Alonso Niño, o piloto chefe da capitânia, Juan de la Cosa estava entre os três mais destacados membros da tripulação da ‘Santa Maria’. Por felicidade, os nomes de seus outros 29 tripulantes também foram preservados para a posteridade.
Mas algo na nau capitânia não agradava a Colombo, que a considerava mais lenta e difícil de manobrar que as caravelas. Tais preocupações e outras, como o tamanho excessivo do calado da embarcação, são evidentes nas anotações de sua terceira viagem às Indias Ocidentais (1498), onde o explorador genovês aponta que dois de seus navios eram muito grandes, um com mais de 100 toneladas e outro com mais de 70, observando que “somente os barcos menores são adequados para viagens de descobrimento, pois a nau que levei em minha primeira viagem (Santa Maria) era pesada e, por isso, perdeu-se no Porto da Natividade”.
O episódio a que se referia o capitão geral revela o inglório fim da nau que liderou a mais importante viagem de descobrimento de todos os tempos.
Na noite de 25 de dezembro de 1492, no decurso da primeira viagem à América, a ‘Santa Maria’ encalhou num banco de areia na ilha de Hispaniola, na baía do Caracol, costa norte do Haiti. Colombo tentou aliviar o peso da embarcação ordenando a retirada do mastro e o esvaziamento dos porões, todavia, em vão.
Consumado o naufrágio, os
JUAN DE LA COSA tripulantes da capitânia foram transferidos para a ‘Niña’ (cujo calado menor a livrara do encalhe), o mesmo sucedendo com a carga, transportada com o auxilio dos indígenas. No local, Colombo fundou o Forte da Natividade, construído em parte com as madeiras da embarcação soçobrada, guarnecendo-o com 39 homens.
Em 13 de maio de 2014, o arqueólogo submarino americano Barry Clifford anunciou publicamente a descoberta dos restos da ‘Santa Maria’. O pesquisador chegara à conclusão em virtude da semelhança dos destroços com os materiais provenientes provavelmente do Forte da Natividade, recuperados por outros arqueólogos em 2003, bem como, através de dados do diário de Colombo, compilados pelo Frei Bartolomeu de las Casas. Não obstante a repercussão mundial e a precipitada declaração do Primeiro-ministro haitiano, Laurent Lamothe, que prometera tomar “todas as medidas para proteger o local, que é um Patrimônio da Humanidade”, em 7 de outubro de 2014 a UNESCO confirmou que os destroços encontrados mão pertenciam a Santa Maria.
Portanto, o único vestígio material conhecido da célebre capitânia de Colombo permanece sendo sua âncora, a principal atração do Museu do Panteão Nacional Haitiano.
A Pinta
Ignora-se quando e onde a ‘Pinta’ foi construída, mas especula-se que tenha sido em Palos de la Frontera, o porto de partida da expedição de 1492.
As únicas fontes de informação sobre a embarcação são procedentes da “História do Almirante”, do cosmógrafo Hernando Colón, filho de Cristóvão Colombo, e do “Diário da Primeira Navegação”, compilado pelo Frei Bartolomeu de las Casas a partir dos escritos do navegador genoves.
Desconhece-se também o nome católico da caravela, lembrada apenas por seu apelido, uma possível referência à família Pinto, proprietária da embarcação, segundo a opinião de alguns historiadores. O certo, porém, é que pertencia a Cristóbal Quintero e Gómez Rascón, ambos de Palos, coproprietários que estavam entre os 25 tripulantes que participaram da viagem de Descobrimento da América.
Capitaneada por Martin Alonso Pinzón, experiente piloto, também de Palos, oriundo de tradicional família de marinheiros, a ‘Pinta’ era caravela de três mastros, arvorando uma vela quadrada de grandes dimensões no mastro grande (central) e outra no traquete (proa), além de uma vela latina (triangular) na mezena (popa). Quando enfunadas pelo vento, as velas quadradas assumiam forma arredondada, daí serem denominadas ainda, num paradoxo, velas redondas.
Com 17 metros de comprimento, 5,36 de boca e 1,85 de calado, a famosa caravela tinha capacidade aproximada de 60 toneladas, sendo considerada por alguns especialistas a melhor e mais rápida embarcação da expedição de 1492. Calcula-se que alcançava uma velocidade de 15 milhas por hora, ou melhor, 12 milhas atuais, porquanto 1 milha náutica da época equivale hoje a 0,8 milhas.
Foi a bordo da ‘Pinta’ que o marinheiro Rodrigo de Triana avistou pela primeira vez as terras do Novo Mundo, em 12 de outubro.
Quando a expedição retornava para a Espanha, poucos dias depois de 16 de janeiro de 1493, já sem a
companhia da ‘Santa Maria’, perdida no Haiti, uma forte tempestade separou as duas caravelas, cabendo à Pinta a primazia de anunciar aos reis católicos o descobrimento, ao aportar na cidade de Baiona, na Galícia, em fins de fevereiro. Dali, Pinzón a encaminhou a seu porto de origem, Palos, aonde atracou em 14 de março.
Em Baiona celebra-se anualmente a “Festa da Chegada”, com a recriação de um mercado medieval e a teatralização da chegada da embarcação com a notícia do Descobrimento da América.
A Niña
Construida entre os anos de 1487 e 1490 nos estaleiros do Porte de Moguer, na província de Huelva, na Andaluzia, a ‘Nina’ era propriedade do armador e navegador Juan Niño (daí seu apelido), um dos 20 tripulantes da embarcação na expedição de 1492.
Em seu lançamento sobre o Rio Tinto, a caravela fora batizada como ‘Santa Clara’, em honra ao Monasterio de Santa Clara, situado na referida localidade. Entretanto, ficou marcada na História com o nome de seu proprietário.
Seu capitão chamava-se Vicente Yáñez Pinzón (ilustração abaixo), natural de Palos, irmão de Martín Alonso Pinzón, comandante da ‘Pinta’. Além de codescubridor da América, alguns historiadores defendem a tese de ter sido Vicente Pinzón o primeiro navegador europeu a atingir o Brasil, ao alcançar as costas do extremo norte do país, em janeiro de 1500, três meses antes da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro.
O aspecto e as medidas da “Nina’ pouco diferiam da ‘Pinta’. Possuía originalmente velame latino, que foi transformado em velas quadradas na escala que a frota do descobrimento realizou nas ilhas Canárias. Já na ilha de Hispaniola, no Haiti, recebeu um novo mastro de mezena, o qual se somara aos mastros grande, traquete e de contramezena, este último, localizado entre a popa e a mezena. O cordame que sustinha os mastros vinha preso no costado do navio, que era desprovido de castelo de proa.
Após o encalhe e naufrágio da “Santa Maria”, no Natal de 1492, a ‘Nina’ se converteu na capitânia da expedição, porquanto a ‘Pinta’ explorava há várias semanas outras lugares por conta própria. A bordo da “Nina’, Colombo regressou à Europa.
Durante a viagem de retorno, a violenta tempestade enfrentada na altura dos Açores quase afundou a embarcação. Tamanho perigo correu a tripulação que Colombo prometera peregrinar em romaria em quatro igrejas cristās, caso a fúria das ondas fosse vencida. A terrível borrasca obrigara o comandante a atracar nas ilhas Açores, pertencentes ao reino rival de Portugal. Ali, parte da tripulação foi presa, sendo libertada posteriormente. Entretanto, depois de partir, um novo temporal forçou uma atracação no porto de Lisboa, em 4 de março de 1493. Ao entrevistar se com o rei D. João II, Colombo informou-o sobre o descobrimento.
Somente em 15 de março a “Nina’ aportou em Palos, aproximadamente vinte dias depois da chegada da ‘Pinta’ à Baiona.
Ao contrário de sua “irmā’, porém, cujo destino depois de 1492 permanece até hoje uma incógnita, a ‘Nina’ empreendeu diversas outras viagens de travessia do Atlântico, em expedições de descobrimento e exploração do novo continente.
No livro “Mundos além do horizonte”, o jornalista alemão Joachim G. Leithäuser (1910-1965) comenta a “carreira aventurosa” da heróica ‘Nina’: “Além de integrar a flotilha com que Colombo descobriu a América, compartilhou de sua segunda viagem; resistiu a um catastrófico furacão em águas das Indias Ocidentais, em 1495, quando viajava isolada; foi mais tarde apresada por piratas no Mediterrâneo e, liberada por sua própria tripulação, ainda conseguiu chegar a seu porto a tempo de acompanhar Colombo a uma terceira viagem à América.
A última viagem conhecida da ‘Nina’ foi em uma expedição à ilha Hispaniola, depois de ter sido reparada e calafetada em Palos. Apenas 35 dias após sua partida, a caravela arribou no Haiti, numa das viagens transatlânticas mais rápidas de seu tempo.
Contudo, uma menção a uma caravela ‘Santa Clara’, capitaneada por Alonso Prieto em 1508, sugere que a intrépida ‘Nina’, “o mais famoso barco que já singrou os oceanos”, na opinião de Leithäuser, navegou alguns anos mais entre o Velho e o Novo Mundo.
Revivendo 1492
Ainda segundo Joachim G. Leithäuser, “em que pese o pequeno tamanho das embarcações, não se pode em absoluto dizer que fossem frágeis cascas-de-noz; eram perfeitamente aptas a resistir aos temporais, bem construídas, bem desenhadas e muito manobreiras, especialmente a favorita de Colombo, a segura e minúscula Nina”.
Em apoio ao escritor alemão, réplicas em tamanho natural das três célebres naus de Colombo foram construídas, empreendendo nos tempos contemporâneos a proeza realizada pelas originais no início da Idade Moderna.
Em 1893, reconstruções da ‘Santa Maria’, ‘Pinta’ e ‘Niña’ singraram o Atlântico, enviadas para participação na Exposição de Chicago.
Um século depois, outras réplicas foram construídas na cidade de Isla Cristina, província de Huelva, por ocasião do 5o Centenário de Descobrimento da América (1992). Lançadas ao mar em 8 de agosto de 1989, no porto do mesmo município, em ato presidido pela infanta Cristina de Bourbon, as embarcações percorreram com sucesso o itinerário de 1492, encontrando-se atualmente conservadas na Doca das Caravelas, um museu situado em Palos de la Frontera, criado como parte das comemorações do 5o Centenário.
Naquela oportunidade, na América e até no longínquo Extremo Oriente (Kobe, Japão). construíram-se outras réplicas das famosas naus, como numa justa homenagem às três memoráveis embarcações que, marcadas por um grandioso destino, ajudaram a mudar o
curso da História.