Em 22 de agosto de 2017, um grande recuo de maré em Santos expôs na Praia do Embaré os destroços de uma velha embarcação, despertando a curiosidade da opinião pública quanto a identidade do misterioso navio. No mesmo dia a equipe do Museu Marítimo visitava o local do encalhe e consultava os registros de naufrágios da instituição, procurando informações que pudessem fornecer pistas sobre o referido sinistro. Na busca empreendida, importantes subsídios históricos foram encontrados, apontando na direção da barca alema ‘Nanny’, encalhada em Santos, em 11 de maio de 1890. Na nova atualização de Diário de Bordo, conheça os primeiros resultados da pesquisa, que será enriquecida com novos estudos.
Introdução
“Nanny’ foi um veleiro de nacionalidade alemā, de três mastros e casco de ferro, inicialmente chamado ‘L’Allegro’, construído em 1868 nos estaleiros da empresa Thomas Royden & Sons, de Liverpool, a qual desenvolveu suas atividades entre os anos de 1818 e 1893. A embarcação teve como primeiro proprietário a companhia inglesa MacVicar, Marshall & Co, de Liverpool. Em janeiro de 1885, foi comprada pela empresa de transporte alemā J.W. Burmester, de Hamburgo. Na tipologia dos veleiros, a ‘Nanny’ (babá, ama-seca) era classificada como “barca”, caracterizada pelas velas redondas nos mastros de traquete (proa) e grande (central) e velas latinas no mastro de mezena (popa). A barca de três mastros foi o tipo de embarcação mais comum empregada para o transporte de cargas em alto-mar na segunda metade do século.
A barca ‘Nanny’ possuía 172 pés de comprimento (52,50 metros), 28,6 pés de boca (8,70 metros) e 17,5 pés de calado (5,30 metros), pesando cerca de 612 toneladas. Em seus 27 anos de serviço, a embarcação teve três capitães: A.P.H Baethgen, C. Wilhelmi e B.H. Müller. A tripulação era composta por 16 homens.
Por volta de 1887, a ‘Nanny’ esteve na costa norte-americana, sendo sua passagem registrada pelo pintor americano Thomas Willis (1850-1925). Nascido em Connecticut, Willis mudou-se para Nova Iorque em 1880, recebendo comissões para retratar os grandes iates e veleiros da região. Trabalhos de sua autoria são geralmente encontrados em vários museus marítimos dos Estados Unidos. Sua pintura a óleo da ‘Nanny’ é talvez a única imagem conhecida do navio.
O encalhe em Santos e a cobertura da imprensa
Em 11 de maio de 1890, a ‘Nanny’ entrava na barra de Santos, oriunda de Sunderland, nordeste da Inglaterra, com carregamento de carvão. Dois dias depois, o jornal “Diário de Santos” publicava uma nota informando seus leitores que “na Praça do Comércio estava ontem à tarde (12/05) afixado um boletim noticiando o encalhe na barra de uma embarcação de nacionalidade alemā”.
Em 14 de maio de 1890, o jornal “Correio Paulistano” dava maiores detalhes do acidente marítimo:
“A barca alema ‘Nanny’, ao entrar ontem, às 6 horas da manha, em nosso porto, encalhou na barra defronte aos dois rios, devido a grande temporal que reinava na costa e que a arrojou para terra, dando de proa para São Vicente. Desde essa hora começaram do navio, por meio de sinais e tiros, pedir socorros, que só chegaram às 10 horas, quando já a embarcação estava irremediavelmente perdida. Os rebocadores que foram ao seu socorro só puderam chegar a noventa metros de distância, visto que o vento que reinou podia jogá-los à terra. As 10 horas, toda a tripulação arriou os escaleres e caminhou para a terra, ficando a bordo o capitão e o piloto”.
Outra materias
Em 15 de maio de 1890, o jornal “Diário de Santos” voltou a tratar do assunto, oferecendo outros subsidios:
“Em relação ao encalhe da barca alemā ‘Nanny’ na praia da Barra, temos a noticiar que o sinistro ocorreu em consequência de forte cerração e ao estado impetuoso do mar. O comandante da barca vendo o perigo que ameaçava fez lançar duas âncoras e, mais tarde, uma outra pequena, que quebrou a corrente. O mar era por demais forte e o navio não tendo muito a fazer para sair mar afora, impelido pela grande correnteza, veio dar na praia em frente ao José Menino.
Disseram-nos que ao chegar à barra, o comandante Müller pedia socorro, fazendo sinais com bandeiras e dando repetidos tiros.
Uma vez encalhado o navio, a tripulação saltou para o escaler, ficando a bordo unicamente o piloto, o comandante e o dispenseiro.
A lancha a vapor da Alfândega, que foi o primeiro a chegar ao local do sinistro, nada pode fazer, não só por encontrar o navio bastante enterrado na areia, como também pela impossibilidade de se aproximar dele. A ‘Nanny’ vinha de Sunderland com carregamento de carvão, consignado aos srs. Zerrener Bullow & Comp. A perda é total. Ontem estava a barca enterrada a seis pés de areia. A praia tem dado vários utensilios de bordo. Anteontem, acudiu muita gente à Praia da Barra para ver o navio encalhado”.
Um ato de coragem
Dentre os muitos curiosos que após o acidente da “Nanny” foram “à praia da Barra para ver o navio encalhado” estavam também os imprudentes que se arriscavam tentando nadar até a embarcação. Em 29 de julho de 1890, o Jornal do Recife’ reproduzia matéria do ‘Diário de Santos’, de 15 de maio de 1890, informando sobre uma aventura que quase terminou em tragédia:
“Na praia da Barra, em Santos, foi presenciado (nota dos autores: no dia 13 de maio, dois dias após o encalhe da ‘Nanny’) por centenas de pessoas um acto de coragem praticado pelo norueguense Carlos Bruhn, que, com sacrificio da própria vida, disputou ao mar a posse de quatro moços ingleses prestes a submergirem-se. Dous deles, querendo ir a bordo da barca ‘Nanny’, ali encalhada, poseram-se a nado. Em meia viagem, ou porque ficassem extenuados ou porque a impetuosidade do mar não lhes permitisse avançar nem retroceder, pediram socorro para terra, indo em auxilio deles mais dois outros indivíduos que, como aquelles, desesperavam-se já de salvar-se, quando do meio da grande multidão, que assistia afflicta àquela scena, partiu o mencionado norueguense. Dando provas de sangue frio incomparável, atirou-se ao mar e nadando, nadando sempre, corajosamente, valentemente, contra a fúria do mar embravecido, conseguiu chegar junto dos quatro indivíduos e salva-los um a um, trazendo-os para a terra. O valente salvador foi recebido na praia pelas pessoas que presenciaram a sua bravura, com vivas demonstrações de sympathia e de respeito pelo acto de coragem que tinha acabado de praticar”.
Com o título “Coragem Inaudita”, o mesmo texto foi publicado no jornal A Federação’, de Porto Alegre, em 30 de maio de 1890.
Leilão e venda da embarcação
Após o sinistro da barca ‘Nanny’, a embarcação encalhada foi vendida em leilão público para proprietário brasileiro ao valor de 660 libras, sendo posteriormente desmontada para o aproveitamento de madeiras, aparelhamento e ferragens, provavelmente para a reutilização na construção naval, como de costume na época.
O testemunho de Juvêncio da Mota
Exatos cinco anos após o encalhe da ‘Nanny’, o jornal “Santos Commercial”, de 10 de maio de 1895, sexta-feira, edição 00221, publicava na primeira página uma crônica curiosa e esclarecedora sobre a barca alemā, intitulada “Um infeliz!”, assinada por Juvêncio da Mota. O artigo (abaixo inserido com ortografia da época) oferece importantes subsídios sobre a localização do encalhe:
Um infeliz!
“Tenho para contar hoje um facto verídico que deu-se commigo no dia 3 do corrente, na Praia da Barra da nossa cidade, quase à noitinha; Ainda sinto os efeitos do enorme susto que sofri naquele resto de dia; os cabelos se me arrepiam neste instante ao descrever palidamente o que segue-se;
Depois de haver tomado parte em esplêndida feijoada no Gonzaga, naquele dia de Santa Cruz, sosinho puz-me a pé caminhando para os lados do Boqueirão.
A noite era silenciosa, céu estrelado, mar bravio; ao longe, a olhos nus, via-se mortiça luz da ilha da Palmas, a enorme ponta dos Taypus cobria-se de um branco véu de neblina, como que pressagiando grossa tempestade; de vez em quando o vento sussurrava e o mar bramia com mais força; depois seguia-se o farfalhar monótono das árvores que nas chácaras da Barra fazem o enlevo dos moradores daquele arrabalde.
Eu caminhava a passos firmes e assobiava para espantar um pouquinho o medo.
Não sei se os leitores do “Santos Commercial” lembram-se ou ultimamente hão reparado no casco quase submergido de uma barca na Praia da Barra. Era uma barca de nacionalidade alemã e por nome ‘Nanny que em busca do nosso porto naufragara lá.
O que os leitores não sabem é que naquele naufrágio perecera um marítimo que ocupava a bordo o cargo de cozinheiro e era natural do Estado do Rio Grande do Norte.
A história desse infeliz é curta. Fora mau filho e, amando, foi correspondido, e constituíra família e possuía um ruim gênio e força de vontade; um dia depois de forte reação com seu velho pai lavrador em Mossoró, daquele Estado, sumiu-se da casa paterna; a “Nanny’ achava-se naquela ocasião em descarga de vários gêneros que trouxera para a casa daquela praça Clausen & C. O infeliz pária pedira lugar a bordo; sabia bem do tempero de cozinha. O comandante da barca, velho e enérgico alemão, filho de Hamburgo, simpatizou com aquele “mágico”. Daí a pouco tempo o Leocádio (assim se chamava o rio grandense) tomava conta das panelas à bordo. Como acima narrei, vinha eu sozinho pela praia, ao enfrentar o casco da velha e arruinada ‘Nanny, quando uma voz sumida ouvi em claro português.
–Caminheiro que passes! Dai noticias de mim e de minha família, dizei a meus nobres filhinhos que vago sobre estes restos naufragados, à minha velha mãe e pai, que me perdoem, lancem-me sua benção e peçam a Deus por mim que sou muito infeliz.
Estatelei: nem mais um passo pude dar, as pernas tolhidas por mortidão repentina, pararam sem eu querer. Pela fraqueza caí na areia da praia, uma dor nos olhos senti imensa. Depois de estar assim por um bom tempo, tornei a mim, com sacrifício abri os olhos, não podia ainda levantar-me.
Que espetáculo medonho eu então assisti leitores!
Tranzido de medo, fazendo esforços para olhar com energia, depois de muito sacrifício vi um homem que enfrentava as ondas que quebravam-se aos seus pés dentro da quase submersa “Nanny’ e dizer caminhando de popa a proa e vice-versa:
Orça ! Ferra o traquete! Pucha acima o bote ! Temos temporal ! Caça os panos! Todos para cima! A postos!
Meu Deus ! Onde estou e o que vejo? exclamei, quem será aquele infeliz que a estas horas paga tão duro tributo ? Orça! Ferra o traquete ! Puxa acima o bote! Temos temporal! Caça os panos! Todos para cima! A postos! Mas onde estavam os comandantes para obedecerem à voz do quase misterioso homem? Infeliz! Muito infeliz quem eu vi à minha frente correndo entre as ondas como um doido e dizendo aquelas palavras em bom português!
Seria a alma do infeliz Leocádio, que foi mau filho, ruim esposo e mau cidadão? Eu entrego este fato à consideração dos Srs. Espíritas da nossa Santos. Desejo que estes homens me expliquem ou façam uma sessão para chamar a ordem aquele espírito transviado, quem sabe, se por causa de uma missa?
Não sei. Porém, posso garantir debaixo de palavra de honra que o que acabo de narrar palidamente deu-se comigo na Praia da Barra, no dia 3 deste mês ( maio de 1895). Aviso isso para alguém não ser vítima como eu de susto igual ao que sofri e que me obrigou a guardar o leito e chamar à minha cabeceira o distinto médico Dr. Ernesto Moreira. Lembro-me que o vulto era alto, barbado, calçava botas e usava pesada roupa de pano piloto.
Faço este aviso porque sei que igual fato já se deu com o Sr. Jeremias Propheta Trindade“
Juvêncio da Mota
O depoimento de Carlos Alfredo Hablitzel
Ao contrário do que se pode imaginar, o aparecimento dos destroços do navio do Embaré não constitui um fato novo. Em décadas anteriores, grandes recuos de mare expuseram o casco da desconhecida embarcação, provocando repercussão e debates sobre sua identidade.
Em 1° de Setembro de 1978, o jornal “A Tribuna” publicou uma matéria sobre o Casco submerso na Praia do Embaré, que tinha então reaparecido. Visando encontrar uma resposta sobre a identidade do navio, a reportagem entrevistou o engenheiro civil Carlos Alfredo Hablitzel (Basiléia, Suíça, 1919 – São Vicente, Brasil, 1988), o fundador do extinto Museu Histórico Naval de São Vicente, cujo acervo encontra-se atualmente sob guarda da Sociedade Museu do Mar e em exposição no Museu Marítimo de Santos.
Dedicando 45 anos de estudos na área de História Marítima, Hablitzel tornou-se um dos mais destacados pesquisadores brasileiros no referido campo. Na oportunidade da matéria, o engenheiro organizava um dos mais completos registros de naufrágios do Brasil.
Na referida reportagem, ao ser perguntado sobre a qual navio pertencia o casco sinistrado junto ao Canal 5, Hablitzel citou a barca alemã ‘Nanny’ como a hipótese mais provável, segundo seus estudos. Vide abaixo a matéria na integra.
Aparecimento de destroços na Praia do Embaré
Em 22 de agosto de 2017, um grande recuo de maré em Santos expôs na praia do Embaré os destroços de uma embarcação não identificada, despertando a curiosidade da opinião pública quanto à identidade do misterioso navio.
A partir das informações recolhidas em seus próprios arquivos, consultas a arquivos públicos e estudos de campo, o Museu Marítimo sugere que os destroços muito provavelmente estão relacionados à barca alemā ‘Nanny”.
A hipótese é bastante plausível pelas seguintes razões:
1 – A localização dos destroços está conforme as informações divulgadas pela imprensa na época. A então Praia da Barra compreendia a faixa de areia entre as atuais praias do Embaré e Ponta da Praia. No jornal ‘Santos Commercial”, de 10 de maio de 1895, 0 cronista Juvêncio da Mota revelou que ao “caminhar para os lados do Boqueirão”, avistara ao longe a ilha das Palmas, na entrada do canal de Santos, e a ponta do Itaipu, na Praia Grande. Olhando-se para o mar a partir dos destroços, os dois pontos referidos são perfeitamente visíveis. O mesmo autor aludiu as “chácaras da Barra” na altura em que deparou-se com o “Casco quase submergido” da barca “Nanny’. Em fins do século XIX, muitas chácaras estendiam-se pela orla de Santos entre o Embaré e a Ponta da Praia. Segundo o jornal “Correio Paulistano”, em sua edição de 14 de maio de 1890, o veleiro encalhou “na barra defronte aos dois rios”. Uma carta do canal e porto de Santos em 1881, apresenta os “dois rios” entre a Praia do Embaré e o Povoado da Barra, exatamente ao final do “caminho da barra” que saindo do centro da cidade terminava justamente na praia do Embaré, local onde
apareceram os destroços da embarcação;
2- Segundo o jornal “Diário de Santos’, de 15 de maio de 1890, a barca estava “enterrada a seis pés de areia” e “acudiu muita gente à Praia da Barra para ver o navio encalhado”, o que evidencia a grande proximidade do encalhe com a praia.
3 – A proa dos destroços parece estar apontada para São Vicente, de acordo com a posição do encalhe noticiada pelo jornal “Correio Paulistano”, em 14 de maio de 1890;
4- As dimensões da embarcação, aproximadamente 52,50 metros de comprimento e 9 metros de largura, demonstram certa compatibilidade com as dimensões dos destroços aflorados no Embaré. Cumpre destacar que o comprimento refere-se ao comprimento da linha de flutuação, que ignora o comprimento total da embarcação, levando em conta somente sua extensão tocada pela água;
5- Registros indicam que a barca “Nanny’ possuía casco de ferro. As estruturas e cavilhas de ferro à mostra no navio do Embaré apontam nessa direção;
6- A estrutura à mostra assemelha-se à dos veleiros da segunda metade do século XIX;
7- A embarcação foi vendida em leilão e desmantelada por proprietário brasileiro após seu encalhe. É fácil supor que um grande veleiro não seria abandonado numa praia até apodrecer e os restos expostos no Embare, relativos à estrutura do navio abaixo da linha de flutuação, sugerem justamente o desmanche realizado à época;
8- Pequenos fragmentos coletados próximos ao casco aparentam ser coque, carvão betuminoso, tipo de combustível derivado da hulha. Segundo as matérias, a barca ‘Nanny’ estava carregada de carvão.
9-O depoimento do engenheiro civil Carlos Alfredo Hablitzel (1919-1988), fundador do extinto Museu Histórico e Naval de São Vicente, que em entrevista para o jornal “A Tribuna”, em 01/09/1978, citou a barca alemã ‘Nanny’ como a identidade mais provável do casco submerso junto ao Canal 5.
Luiz Alonso Ferreira e Luiz Goncalves Alonso Ferreira
Colaborador: Márcio Tavares