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O Fogo Grego

O Fogo Grego

Doze séculos antes do surgimento do moderno lança-chamas, a marinha bizantina utilizava uma arma incendiaria que cuspia fogo sobre as embarcações inimigas e, queimando seus tripulantes, continuava a arder na superfície do mar.
Guardada como segredo de estado por séculos, sua fórmula é debatida até os dias atuais, sendo a responsável por muitos triunfos navais bizantinos – especialmente em dois cercos árabes a Constantinopla – que garantiram a sobrevivência do Império Romano do Oriente por quase mil anos. Conheça mais em Diário de Bordo uma das mais temíveis e misteriosas armas navais de todos os tempos.

O fogo grego em ação


Invenção e emprego

A invenção do fogo grego é situada por volta do ano 672 e atribuída geralmente a Calinico, um arquiteto de Heliópolis (atual Baalbek, cidade histórica do Líbano), na então província da Fenícia, naquele tempo arrasada pela expansão islâmica. Alguns registros indicam, porém, que Calinico apenas aprimorou a fórmula de uma arma incendiaria já existente. James Riddick Partington (1886-1965), um químico e historiador da química britânico, sugeriu através de seus estudos que a arma foi “inventada pelos químicos de Constantinopla, que tinham herdado as descobertas da escola de química de Alexandria”.
O fogo grego surgiu num momento delicado na história do Império Bizantino, enfraquecido pelas guerras contra o Império Persa Sassànida e sem meios efetivos para se defender de uma potência em ascensão: o Islamismo. De fato, ao longo de uma geração, as províncias bizantinas da Síria, da Palestina e do Egito haviam caído sob o domínio dos árabes, que por volta de 672 partiram para conquistar a capital imperial de Constantinopla.
Durante o primeiro e segundo cercos muçulmanos de Constantinopla, respectivamente entre 674 a 678 e 717 a 718, o fogo grego representou papel primordial no desbaratamento das frotas islâmicas. No final do século IX e início do X, no período de expansão bizantina, a temível arma incendiaria assegurou importantes vitórias navais para os cristãos.
A misteriosa substância foi empregada ainda nas guerras civis bizantinas, principalmente na revolta das frotas em 727 e na grande rebelião liderada por Tomás, o Eslavo em 821-823, ambas suprimidas pela frota imperial de Constantinopla através do uso decisivo do fogo grego.
Os bizantinos também utilizaram a arma com efeitos devastadores contra os vários ataques dos rus (oriundos da Rússia Kievana) ao Bósforo, especialmente em 941 e 1043, bem como, durante a Guerra Búlgara de 970-971, quando os navios bizantinos carregando fogo bloquearam o Danúbio.

Em verde, os territórios do Império Bizantino em 650, período em que provavelmente surgiu o fogo grego. Todas as províncias do sul estavam perdidas, com exceção do Exarcado de Cartago, o que mostra a importância para a defesa do Império da recém-criada arma incendiária

Um fogo divino


A importância do fogo grego nas guerras bizantinas levou sua descoberta a ser atribuída à intervenção divina. Em seu livro De Administrando império, o imperador Constantino VII Porfirogênito aconselhava seu filho e herdeiro, Romano II, que reinou de 913 a 959, a nunca revelar os segredos da fabricação, pois a fórmula havia sido “revelada por um anjo para o grande e sagrado primeiro imperador cristão Constantino”. O anjo recomendara a “somente preparar este fogo para os cristãos e somente na cidade imperial”. Como aviso, ele acrescentava que um oficial bizantino subornado para entregar um pouco do composto para os inimigos do império fora atingido por uma “chama vinda do céu”, quando estava prestes a entrar em uma igreja. Como o caso mostra, os bizantinos não podiam evitar a captura da preciosa arma secreta: os árabes aprisionaram pelo menos um navio de fogo intacto em 827. Os búlgaros capturaram vários sifões e bastante da própria substância em 812-814. Mesmo assim, eles não conseguiram copiar a fórmula exata. Os árabes utilizaram diversas substâncias incendiárias similares ao fogo grego, mas jamais foram capazes de imitar o método bizantino de sua utilização com o sifão e, ao invés disso, empregaram catapultas e
granadas.

Constantino VII Porfirogênito e sua mãe, Zoé Porfirogênita, retratados em moeda bizantina do século X. O imperador atribuía a origem do fogo grego à intervenção divina

Fórmula perdida


go grego continuou a ser mencionado durante o século XII, sendo seu uso descrito numa batalha naval contra Pisa, em 1099. É possível também que tenha sido empregado nos navios de fogo bizantinos para repelir o cerco de Constantinopla de 1203 pela Quarta Cruzada, mas nenhum registro seguro confirma o uso. Isto pode ter sido causado pelo desarmamento geral do império nos vinte anos que precederam o saque, pela perda do acesso bizantino às regiões onde os ingredientes primários eram encontrados ou mesmo em virtude da perda da fórmula com a passagem dos séculos.
Consta que no século XIX, um armênio chamado Kavafian contatou o governo do Império Otomano com um novo tipo de fogo grego que havia inventado. Kavafian recusou-se a revelar a sua composição quando inquirido pelo governo, insistindo em ser colocado no comando do seu uso nos combates navais. Pouco depois, o inventor fora envenenado pelas autoridades imperiais, sem que as mesmas tivessem descoberto o seu segredo.

A captura de Constantinopla, durante a Quarta Cruzada, em 1204


O mistério da fabricação


O mistério” da fórmula por muito tempo dominou a pesquisa sobre o fogo grego. Entretanto, a arma é mais bem entendida como um completo sistema de combate com muitos componentes, todos necessitando operar em conjunto para torná-la efetiva. Isto compreendia não somente a fórmula da composição, mas também a condução dos dromons, os navios de guerra que a carregavam para a batalha, o mecanismo usado para preparar a substância, aquecendo-a e pressurizando-a, o sifão que a lançava e o treinamento especial dos sifonários que o manejavam. O conhecimento do sistema completo era altamente compartimentalizado, operador e técnicos dominavam apenas os segredos de um componente. Caso capturados, nenhum inimigo poderia conhecer o segredo da fórmula em sua totalidade. Por esta razão, quando os búlgaros tomaram Nessebar e Burgas, em 814, Capturando 36 sifões e mesmo uma certa quantidade da substância, nenhum uso conseguiram fazer deles.
Na sua obra Alexiada, a princesa bizantina Ana Comnena parece fornecer uma pista da fabricação do fogo grego, após seu uso pela guarnição imperial de Dirraquio, em 1108, contra os normandos:


Este fogo é fabricado pelas seguintes artes. Do pinheiro e certas árvores perenes, a resina inflamável é coletada. Ela é esfregada com enxofre e colocada em tubos de bambu, e é soprada pelos homens com a respiração violenta e continua. Desta maneira, ela encontra o fogo na ponta, se incendeia e cai como um redemoinho ardente nas faces dos inimigos”.


Referências literárias contemporâneas ao fogo grego descrevem-no de acordo com algumas características, tais como:

  • O fogo queimava sobre a água e só era extinto por poucas substâncias: areia, vinagre forte ou urina.
  • Tratava-se de substância líquida e não algum tipo de projétil, pois era chamado de “fogo liquido”.
  • No mar, costumava ser lançado por um sifão, mas também atirado sobre o inimigo em potes de cerâmica ou granadas.
  • À descarga seguia-se um barulho de “trovão” e “muita fumaça”.

Detalhe de um querosifão, versão de lançador portátil do fogo grego

Debates sobre a composição

A primeira e, por muito tempo, mais popular teoria sobre a composição do fogo grego indicava que o seu ingrediente principal era o nitrato de potássio, tornando-o um precursor da pólvora. Esta visão foi mais tarde rejeitada, visto que o nitrato de potássio não parece ter sido usado em guerras na Europa ou no Oriente Médio antes do século XIII, estando totalmente ausente dos registros dos árabes, os mais importantes químicos do mundo mediterrâneo na mesma época.

Uma segunda visão, baseada no fato de que o fogo grego não era extinguivel pela água – na verdade, algumas fontes sugerem que a água caindo sobre ele intensificava as chamas -a sua força destrutiva era o resultado de uma reação explosiva entre água e cal. Embora a cal certamente fosse conhecida e usada pelos bizantinos e árabes em guerras, a teoria é refutada pela evidência literária e empírica. Uma substância baseada na cal teria que entrar em contato com água para provocar ignição, enquanto a obra Táctica, do imperador Leão VI, indica que o fogo grego era frequentemente derramado diretamente nos conveses dos navios inimigos. Além disso, C. Zenghelis mostrou que, baseado em experiências, o resultado real da reação água-cal seria desprezível em mar aberto.

A maior parte dos estudiosos modernos concorda que o verdadeiro fogo grego era baseado em petróleo, cru ou refinado, comparável ao moderno napalm. Os bizantinos tinham fácil acesso a óleo cru de poços naturais que ocorriam próximo ao mar Negro (por exemplo, os poços em torno de Timutorakan, registrados por Constantino VII Porfirogênito) ou em várias localidades por todo o Oriente Médio. Um nome alternativo para o fogo grego era “fogo medo” e o historiador do século VI Procópio de Cesareia registrou que o óleo cru, chamado nafta pelos persas era conhecido pelos gregos como “óleo medo”. Isto parece confirmar o uso da nafta como um ingrediente básico do fogo grego. As resinas eram provavelmente adicionadas como espessante e para aumentar a duração e intensidade da chama. Uma mistura teórica moderna incluiu o uso de alcatrão de pinho e gordura animal junto com outros ingredientes.

Granadas de cerâmica, enchidas com fogo grego e envolvidas com estrepes. Um outro modo de uso da famosa arma incendiária bizantina. Exemplares dos séculos X – XII. Museu Histórico Nacional, Atenas, Grécia

O manejo da arma


Na sua forma inicial, o fogo grego era arremessado como uma granada sobre as forças inimigas, uma bola envolta em pano em chamas, talvez contendo um frasco, usando uma forma de catapulta leve, mais provavelmente uma variante marítima da catapulta leve romana. Elas eram capazes de atirar projéteis leves (em torno de 6 a 9 kg) a distâncias de 350 a 450 metros.
O principal método de utilização do fogo grego, porém, era seu lançamento através de bordo de navios ou em cercos. Lançadores portáteis (querosifões) foram também desenvolvidos, supostamente pelo imperador Leão VI (que reinou entre 886 e 912), tanto para uso no mar como em terra, sendo considerados os precursores dos modernos lança-chamas. Os manuais militares bizantinos também mencionam que jarros cheios com o fogo grego e estrepes amarrados com estopa e embebidos na substância eram lançados por catapultas, enquanto gruas pivotantes eram empregadas para derramá-la sobre os navios inimigos.
Os dromons bizantinos normalmente tinham um sifão instalado em sua proa, abaixo do castelo de proa, mas mecanismos adicionais, dependendo da situação, podiam também ser colocados em outros locais no navio. Assim, em 941, quando os bizantinos estavam enfrentando uma frota rus’ muito maior, sifões foram instalados também entre os navios e mesmo à popa.


Lançadores tubulares

O uso de lançadores tubulares está amplamente atestado em fontes contemporâneas. Ana Comnena descreve lançadores de chamas gregos com formas de animais sendo montados na proa de navios de guerra:
“Quando ele (o imperador Aleixo / Comneno) soube que Pisa era hábil na guerra naval e temeu uma batalha contra ela, na proa de cada navio fez colocar uma cabeça de leão ou outro animal terrestre, feito de latão ou ferro com a boca aberta e depois dourado, de modo que seu simples aspecto ero aterrorizante. E o fogo que era para ser dirigido contra o inimigo através dos tubos, ele fez passar pelas bocas das feras, de modo a parecer que os leões e outros monstros similares estavam
vomitando o fogo”.

Outro registro, possivelmente de primeira mão, do uso do fogo grego, vem da saga Yngvars saga viðförla, do século XI, onde o viking Ingvar the Far-Travelled enfrenta navios equipados com armas com o fogo grego:
[Eles] começaram a soprar com foles de ferreiro sobre um forno em que havia fogo, e dai veio um grande estrondo. Lá havia também um tubo de latão (ou bronze), e dele saiu muito fogo contra um navio, e ele se queimou rapidamente, de modo que todo ele se transformou em cinzas brancas…”.

Os registros conferem com muitas das características do fogo grego conhecidas por outras fontes, tal como o grande estrondo que acompanhava a sua descarga. Os dois textos são também as duas únicas fontes que explicitamente mencionam que a substância era aquecida sobre um forno antes de ser lançada. Embora a validade destas informações esteja aberta a questionamentos, reconstruções modernas basearam-se nelas, levando a experimentos que reproduziram com relativo sucesso os lançadores tubulares bizantinos. Utilizando petróleo misturado com resinas de madeira, os pesquisadores conseguiram uma chama com temperatura acima de 1000 °C e um alcance efetivo de mais de 15 metros.

Esquema moderno do forno de aquecimento do fogo grego


Uma arma temível, mas não invencível


Embora o poder de destruição do fogo grego seja indiscutível, ele não era uma arma milagrosa, tampouco tornou a marinha bizantina invencível. Apesar de ter permanecido como uma arma potente, suas limitações eram significativas quando comparadas a formas mais tradicionais de artilharia. Na sua versão de lançamento por sifões, tinha um alcance limitado e só podia ser usado com segurança em mar calmo e em condições favoráveis de vento. Ao final, as marinhas muçulmanas se adaptaram ao fogo grego, permanecendo ao largo de seu alcance efetivo e desenvolvendo métodos de proteção, como feltro ou couro embebidos em vinagre.
Em 1453, quando os turcos otomanos conquistaram Constantinopla, derrubando o Império Romano do Oriente, a temível arma incendiária já pertencia ao passado glorioso da marinha bizantina.

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